Novamente, vejo-me na
obrigação de lançar luz à opinião da imprensa sobre “O Hobbit”, mais
especificamente, sobre o filme.
Um conceituado impresso
diário de outra capital do país publicou no dia 28 de março uma resenha sobre a
adaptação de Peter Jackson “Uma jornada inesperada”, resumindo-a como um “déjà vu” e uma “cópia inferior de “O
Senhor dos Anéis”, desprovido de roteiro, mas com o “xerox de um cheque
milionário que alguém tenta descontar no banco pela segunda vez”.
Que o filme “O Hobbit” é e
tem gerado um fenômeno mercadológico bilionário, isso não se discute. Mas isso
não pode servir de argumento para desprover o filme de seus méritos, principalmente
o roteiro (salvo as distorções que levaram inclusive Christopher Tolkien, filho
e co-autor das obras do pai, J.R.R. Tolkien, a dar as costas para Peter
Jackson, ver o antepenúltimo post).
Vale lembrar que o roteiro
do filme nada mais é do que a narrativa do livro modificada para a linguagem do
cinema, guardados os acréscimos por conta exclusiva dos roteiristas. Sob esta
perspectiva, dizer que “O Hobbit” não tem roteiro, é quase o mesmo que dizer
que o livro não tem narrativa. Será?
Outro detalhe duramente
criticado é o fato de Peter Jackson ter pegado uma narrativa de um livro só,
divididi-la em três como estratégia de obter mais lucros financeiros.
Qual é o problema nisso? De
que outra forma os fãs de Tolkien poderiam ver extras como o mago Radagast em ação, ou assistirem uma parte da Azanulbizar,
mesmo que sejam assuntos de outras obras de Tolkien? Como seria possível “convidar” mais pessoas a conhecerem “O
Hobbit” original? Eu tenho certeza que uma legião de fãs “daria um braço” para
ver cenas de outras obras de Tolkien inseridas no enredo de “O Hobbit” (o que
penso que vai ocorrer nas duas próximas sequências).
Não que eu pretenda
justificar e aprove as modificações do enredo original, penso que o filme
deveria, tanto quanto possível, ser original à obra. Mas convenhamos: “O Senhor
dos Anéis” teve lá suas alterações, foi um sucesso de bilheteria, e não me
lembro da imprensa ter recriminado Peter Jackson e seu trabalho.
Acredito, antes de qualquer
ataque contra “O Hobbit” e suas derivações, que a opinião pública deveria
agradecer que ainda exista alguém disposto a trabalhar arduamente para
aproximar livros como este do grande público, cuja qualidade é verdadeiramente indiscutível,
ao contrário da trilogia dos “50 tons” e afins que as editoras gostam de
importar e disseminar no mercado brasileiro, isso sim um verdadeiro oportunismo
de mercado que nunca vi a imprensa combater: editoras brasileiras deixam de
valorizar talentos pátrios para comercializar o que é ditado no mundo
anglossaxão, em geral literatura erótica barata, faturando seus dólares
enquanto sua própria nação continua inculta e sem representantes na Literatura.
Respondam rápido: Citem um nome de um jovem e famoso escritor brasileiro atual,
conhecido por todos tanto quanto E. L. James?
Aliás, diga-se de passagem,
o mesmo diário diz em outra de suas colunas que as obras da autora, também
britânica, tem contribuido para o crescimento e popularização de clubes
especializados em práticas sexuais que envolvem violência, aqui e no exterior.
Já que o jornal em questão
usou Tolkien e James como assunto, poderia ter aproveitado e chamado a atenção
do público para o fato de que as obras desta ofuscou a venda das obras do
mestre (lembro-me de ver “O Hobbit” entre os mais vendidos apenas uma vez num
conhecido ranking semanal, enquanto a trilogia dos “50 tons” não sai do topo
desde que foi publicada).
A minha intenção não é dar
lição de moral, minha preocupação é com as crianças: a sociedade está tão
ocupada em excitar-se sexualmente a qualquer custo que está esquecendo o risco
a que as crianças estão sendo expostas num ambiente influenciado por este tipo
de literatura.
Retornando à matéria, ela segue,
partindo para o ataque direto às personagens do filme/livro: eles não são
“carismáticos”, “é quase impossível discerni-los e criar empatia por eles”.
Carismáticos sob qual ótica?
Do clichê do “galã-de-novela-sempre-sorridente”? Quem não consegue diferenciar
o veterano de guerra “durão” em Dwalin, o jovem inexperiente em Ori, as
dificuldades do obeso em Bombur, o exímio arqueiro em Kili, a cordialidade no
idoso Balin, a astúcia em Bofur, e assim por diante?
No que diz respeito à
caracterização de cada um dos anões, o filme, na verdade, supriu uma lacuna
deixada pelo livro, que não fornece muitos detalhes sobre todos. De qualquer
forma, seja num ou outro, é preciso observação e sensibilidade, algo que a
visão marqueteira não permite – tudo deve ser bem evidente, pronto e mastigado
– o que basicamente, é o papel dos resenhistas.
Já não poder sentir empatia
pelos anões, povo degredado, forçado a vagar de um canto a outro em busca de trabalho
e sustento, sem falar que são sobreviventes de uma guerra que os marcou
profundamente (Azanulbizar), chega a soar sociopático.
Mas tudo, talvez, é porque
anões não são como os belos e esguios elfos, ou pelo menos como os homens, com
quem é mais fácil de se identificar – parece que ninguém quer se por no lugar de
seres de baixa estatura, pobres e sem teto.
Thorin Escudo-de-Carvalho, o
líder dos anões, recebe sua cota exclusiva de farpas, rotulado de “mal-humorado
e arrogante” na resenha. De fato, Thorin não é um personagem simpático, nem acredito
que Tolkien o criou para que o fosse. Portanto, vamos a um exercício de
empatia, a qual aliás cito no meu livro “O Hobbit: Um amigo para seu filho”
como um exemplo presente na narrativa: Thorin é um príncipe guerreiro que
perdeu o avô, o pai, seu reino e muitos dos seus súditos de forma trágica, e
tudo o que ele pensa é fazer-lhes justiça.
Sinceramente, eu não conseguiria
ser melhor que Thorin. Mas quem o definiu com as características acima ignora o
reconhecimento e o abraço que ele dá em Bilbo por ter-lhe salvo a vida, o que
no livro nem acontece. Ah, sim, está explicado: o(s) resenhista(s) não deve(m)
ter lido o livro, e estava(m) tão atento(s) anotando os defeitos que não
vira(m) esta cena.
E depois, vem a afirmação de
que “ ‘O Hobbit’ é uma história sobre a importância de se ter uma casa (...).
Mas é só na cena final que esse tema é revelado, minutos antes do fim.”
Será possível que ninguém
prestou atenção que o ataque de Smaug a
Erebor deixou centenas de anões desabrigados logo no início do filme, dentre
eles, os 13 anões que se reuniram na toca de Bilbo para tratar nada menos do
que voltar para Erebor, assunto que aliás eles não mudam nunca?
Qual é o problema com os
anões? Qual é o problema com “O Hobbit”?
Parece haver uma aura de
desprezo em torno da obra e tudo o que lhe diz respeito, tentando classifica-lá
como tão somente uma tentativa milionária de se fazer cinema à moda de “O
Senhor dos Anéis”.
Ou talvez porque “O Hobbit”,
a princípio um conto de fadas para crianças, é ingênuo e profundo demais para
quem está deveras enredado em suas vidas de adulto, sem tempo ou vontade para
voltar sua atenção para um mundo de fantasia, de sonhos, de valores, de luta
entre o bem e o mal.
No meu já citado livro, além
de convidar adultos, e mesmo jovens e crianças, para lerem “O Hobbit” e captar
os bons exemplos que ele traz, eu falo também em um trecho ou outro sobre a
importância de se enxergar o lado bom das coisas, apesar das dificuldades,
imperfeições, etc.
Toma menos tempo tratar tudo
com superficialidade, atribuir rótulos, desmerecer, excluir, em nome da
padronização e do “perfeito”. Essa é a lógica de mercado, contra a qual a
resenha parece se levantar. Mas penso que houve uma inversão de papéis. Se
Gandalf estivesse presente, até posso ouvir ele dizendo: “o feitiço virou
contra o feiticeiro”.
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